domingo, 18 de outubro de 2009

Oscar D’Ambrosio - texto crítico


San Bertini

A construção do naïf

A chamada arte naïf comporta numerosas definições. A maioria delas preocupa-se muito mais com conceitos externos ao quadro, como a origem social e econômica do artista e a sua formação acadêmica – ou falta dela –, do que com a discussão daquilo que se vê no quadro propriamente dito.
Um caminho alternativo – e bastante saudável – reside em olhar primeiro o quadro antes de jogar sobre ele numerosas nomenclaturas. As obras da artista plástica paulista San Bertini percorrem o universo do naïf, no seu sentido literal, “ingênuo”, pela capacidade de serem compostas com a mesma pureza e cuidado que uma casinha de bonecas.
Cada novo elemento, seja uma cerca, uma pessoa ou algumas flores, é progressivamente colocado de modo a compor uma realidade fantástica que se instaura imagem a imagem. Da somatória desses elementos, surgem quadros em que a separação de cada elemento, embora possível, compromete a graciosa e delicada montagem do todo.
San Bertini leciona desenho e pintura e ganhou diversos prêmios como artista acadêmica, mas no universo do naïf encontra talvez a mais legítima expressão de seu ser. Não se trata de uma frase de efeito, mas de um poderoso sentimento de que as cenas de festas populares e do interior paulista brotam com pujança e cores de impacto.
Mesmo quando a imagem possui uma atmosfera noturna, as cores intensas se fazem presentes expressando uma visão de mundo marcada pela liberdade de trabalhar com composições e formas. O naïf, para San Bertini, é exatamente a manifestação visual de um intenso desejo de que a arte possa fluir acima dos cânones.
O que torna a arte intensa como manifestação artística é justamente a possibilidade de renovação em cada tela. San Bertini consegue esse objetivo no momento em que constrói cada trabalho com primor. Palpites dos observadores são incorporados como contribuições nesse processo alegre de dar vida ao quadro.
Uma simples mesa de refeições, por exemplo, que ocupa espaço diminuto, de poucos centímetros, torna-se um universo de alusões culturais, com a descrição de cada alimento ali exposto e as relações entre os comensais, que podem ir do sacerdote às crianças, com a mesma liberdade de criação, bom humor e, acima de tudo, prazer de estabelecer infinitos elos entre esses personagens e objetos.
O lúdico predomina no sentido de manter o aprimoramento técnico, mas com a certeza permanente de que a verossimilhança com o real está em segundo plano perante o mergulho em cada imagem de maneira autônoma, quase um mundo paralelo, no qual as proporções internas são postas a serviço de composições harmônicas que fascinam pelos detalhes precisos e acabamento esmerado.
Oscar D’Ambrosio, jornalista, é mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes (IA) da UNESP, campus de São Paulo e integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA-Seção Brasil). É autor, entre outros, de Contando a arte de Peticov (Noovha América) e Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus (Editora Unesp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).

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